O curta-metragem “Entre Rios” é uma produção
independente do cineasta Caio Ferraz, que trata da urbanização desordenada da
cidade de São Paulo e os impactos que ocasionou aos seus rios e córregos, cujas
questões tratadas podem ser facilmente extrapoladas para outras cidades do
Brasil e do mundo.
Em seu histórico, a vila de São Paulo de
Piratininga que significa rio do peixe seco na língua tupi, se originou nas
margens do rio Tamanduateí. Os peixes deste rio, após as cheias, ficavam presos
e morriam na baixa do rio, atraindo formigas e, consequentemente, os tamanduás
que lá viviam, daí o nome dado ao rio pelos indígenas que navegavam por suas
águas em busca de alimento e de travessia para a entrada no rio Tietê, onde o
Tamanduateí deságua.
O vídeo alerta sobre o mau planejamento na
urbanização das áreas agrícolas, com as ocupações humanas por meio de
residências, comércio, indústrias, ruas, avenidas e toda sorte de aparelhos
urbanos se dando de forma a não respeitar o regime natural dos rios, que
apresentam épocas de cheias e secas.
Segundo Tucci (2011) na bacia hidrográfica rural,
o movimento da água é armazenada pela vegetação, infiltrando no solo, sobrando
apenas o escoamento sobre a superfície de forma gradual, fazendo um hidrograma
com alteração lenta de vazão e com piques de enchentes moderados. No modo
natural de enchente, as águas atravessam somente a calha menor do rio mais ou
menos em dois anos, após o qual, no período de cheias, há a ocupação de seu
leito maior.
Esta dinâmica todo rio possui e muitas das vezes
as cheias são mais espaçadas em termos temporais, o que dá a impressão, às
pessoas, de que apenas o leito menor do rio é ocupado por águas. Deste modo, as
áreas ribeirinhas acabam por ser ocupadas e, consequentemente, são inundadas
quando chove. A Figura abaixo apresenta a estrutura dos rios, em termos de seu
leito menor e maior (planície de inundação ou área ribeirinha), em seção
horizontal (na esquerda) e transversal, na direita.
Fonte:
Tucci (2008, 16).
Pouco a pouco, além destas ocupações, as micro bacias que compõem o espaço em urbanização são ocupadas com áreas
impermeáveis que fazem parte dos loteamentos urbanos, levando a um aumento do
escoamento superficial das águas das chuvas, não mais retidas pelo solo com a
vegetação que fora retirada do local. Deste modo, as águas que seriam
absorvidas pela vegetação se direcionam rapidamente pelas ruas e avenidas com
diversos contaminantes químicos presentes no asfalto e com os resíduos sólidos
também presentes, alcançando, em poucos minutos, rios e córregos e contribuindo
para agravar as enchentes urbanas. Deste modo, o ciclo da água é alterado nas
áreas urbanas, visto que a absorção das águas das chuvas é diminuída de forma
drástica, não efetuando a recarga dos aquíferos e lençóis freáticos que
alimentam os rios. Além disto, as águas que agora chegam a estes rios possuem
os contaminantes que alteram significativamente a qualidade hídrica, que já não
pode ser utilizada para o abastecimento humano, a pesca e, principalmente, para
a manutenção da vida aquática. A biodiversidade existente nestes ecossistemas é
bastante diminuída, restando somente aqueles organismos mais adaptados a
condições adversas. Em vários casos, como ocorre com o rio Tietê que atravessa
a cidade de São Paulo, por exemplo, apenas as bactérias anaeróbicas sobrevivem
à poluição gerada.
Além disto, o vídeo mostra como os rios não são
apenas desconsiderados como parte essencial do ecossistema urbano, mas também
vistos como um empecilho, um problema à vida nas cidades. O modelo de
urbanização adotado no Brasil, que dá atenção ao transporte individual por
carros conduz ao aumento da extensão e alargamento das ruas, dando espaço à
grandes avenidas para aumentar o fluxo dos passageiros que transitam na cidade.
Para fazer isto, os rios que impedem a travessia dos carros são aterrados e
“estrangulados”, ou seja, tem sua largura diminuída. Imaginemos então o que
ocorrem quando há uma chuva mais intensa em um local assim construído. As
enchentes, antes naturais, que ocupavam somente a planície de inundação dos
rios caudalosos, cheios de curvas, agora ocasionam um verdadeiro caos urbano,
com enormes perdas econômicas e muitas vezes de vidas humanas!
Para resolver o problema ocasionado por falta de
planejamento urbano que é derivado de uma concepção errônea da cidade, não
vista como um ecossistema complexo, onde sua paisagem e condições naturais são
totalmente ignoradas, estes mesmos rios são transformados, por obras de
engenharia, em passagens para as águas pluviais, as quais, para seguirem
rapidamente, precisam de superfícies lisas para atravessar. Assim, os rios são
concretados em suas margens e em seus leitos, sendo finalmente convertidos em
canais de água, já totalmente desnaturalizados. A fauna e flora residentes já
não existem mais e eles não são mais os ecossistemas complexos de que tantos
seres vivos e os humanos dependem para sobreviver.
É nisto que se converteu o rio Tamanduateí, que
abrigava uma diversidade imensa de vida e era fonte de alimento e transporte
para os antigos habitantes de São Paulo..
Um organismo tão complexo dando espaço à cidade,
esta floresta de concreto que com seus meios de produção capitalista, pautados
por uma lógica desenvolvimentista e individualista, prejudicam o meio que dependemos para viver. Atualmente, a
cidade de São Paulo e tantas outras que passaram por este mesmo modelo de
urbanização sofrem com as inundações provocadas por humanos.
Segundo Tucci (2008,p.99), tal modelo
também é produto da “desorganização, de pouca informação sobre o assunto, falta
de conhecimento e de educação”. Inundações deste tipo estão intimamente ligado
com os valores que norteiam as decisões
tomadas pelo Poder Público, que se relacionam à uma super valorização de
questões econômicas imediatistas e que, pela ausência da participação da
sociedade nas tomadas de decisão que a afetam diretamente, conduzem a um abismo
social, já que a cidade não é vista em sua totalidade e, portanto, não é
construída para o conjunto da sociedade, mas sim para o bem-estar de poucas
pessoas economicamente abastadas.
“Entre Rios” é um ótimo documentário para se
trabalhar em sala de aula, dado seu conteúdo multidisciplinar e poético,
mostrando a importância de um bom planejamento urbano, que seja amplamente
participativo e dado a partir do conhecimento do local, em sua complexidade
ecológica. É possível apresentar aos estudantes que os rios são ecossistemas
dinâmicos, que são indispensáveis à vida humana e que devem ser conhecidos e
respeitados. Pode-se trabalhar de forma interdisciplinar e, por meio de uma
vivência concreta assim trazida, conceitos difíceis de serem compreendidos,
como a de bacia hidrográfica e trazer à tona a legislação ambiental que protege
as margens dos rios, tais como o Código Florestal, dentre outros.
Muita
gente diz que a situação dos rios em são Paulo é um desastre, que nunca foi
feito um planejamento urbano que considere suas águas. Em uma entrevista para o
portal “uol”, o Arquiteto e urbanista Dr. Paulo Mendes da Rocha, diz sobre os
rios: “Eles fazem parte de um sistema que é, enfim, a rede hídrica, fluvial, de
uma região. [...] O rio flui, portanto, você não pode tratá-lo bem no trecho
que ele atravessa uma cidade como fato isolado. [...] Há muito tempo que está
entre nós esboçado o desastre, por falta de atenção, não por falta de saber.”
Portanto,
recomendamos a você, caro leitor, a apreciação deste belo e importante
curta-metragem, para uma reflexão acerca das cidades que todos nós desejamos
para o presente e futuro da humanidade. Obrigada pela leitura!
TUCCI, C. E. M. Águas
urbanas. São Paulo. 2008.
TUCCI, C. E. M. Inundações
Urbanas. São Paulo. 2008.
ROSA, G. S. Do outro lado do
rio. Trilogia. Rio de Janeiro.2013 Disponível em: < http://gizmodo.uol.com.br/urbanismo-2/page/2/>
Acessado 21 ABR de 2016.